quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Parecer jurídico solicitado pela Sociedade de Advogados AAA

Notas introdutórias

Através da Sociedade de Advogados AAA, representantes do Sr. José Manuel Espadinha, foi pedido a elaboração de um parecer jurídico sobre os acontecimentos na reunião do Conselho de Justiça da Federação Popular de Futebol (adiante designados “CJ” e “FPF” respectivamente) de dia 4 de Julho de 2008, com o fim de apreciar a legalidade da actuação dos seus membros, designadamente do seu presidente.
Ocupar-nos-emos fundamentalmente sobre três problemas. A saber: procedimento do Presidente do CJ na declaração de impedimento de um dos membros do CJ; legitimidade e admissibilidade para o encerramento da reunião por parte do Presidente do CJ; reunião sem a presença do Presidente do órgão. Com esse fim teremos em consideração os factos contidos nas duas actas elaboradas nesse dia, assim como aqueles que nos foram cedidos pela sociedade que nos procurou.
A FPF é uma pessoa colectiva de direito privado (art. 1.º n.º 1 dos Estatutos da FPF), foi declarada de utilidade pública (pelo DL n.º 460/77) e o estatuto de utilidade pública desportiva (pelo DL n.º 144/93). Por força destes estatutos, a FPF tem competência para o exercício, dentro do âmbito desportivo, de poderes regulamentares e disciplinares. O CJ é um órgão da FPF com funções de tipo disciplinar e jurisdicional e o seu funcionamento é regulado pelo Regimento do CJ da FPF e, subsidiariamente pelo Código de Procedimento Administrativo (adiante “CPA”).

O parecer

A – Decisão de impedimento do vogal Dr. Fintas
No dia 3 de Julho de 2008 deram entrada na FPF três requerimentos dirigidos ao presidente do CJ alegando o impedimento e/ou suspeição do vogal do CJ Dr. Fintas, apresentados pelo Belavista Futebol Clube; no dia seguinte, por via telecópia, deram entrada mais dois requerimentos com o mesmo objecto apresentados pelo presidente do Oporto FC dirigidos, igualmente, ao presidente do CJ. Procedeu-se à distribuição dos requerimentos pelos restantes membros via correio electrónico. O Dr. Fintas foi formalmente notificado da decisão que o impedia de votar nos recursos que haviam de ser decididos naquela reunião. Estes são, em síntese, os factos que nos cabe apreciar.
Nos termos do art. 45.º n.º 1 CPA, as causas de impedimento devem ser invocadas pelo próprio titular do órgão, embora qualquer interessado possa requerer a declaração de impedimento (art. 45.º n.º 2 CPA). Foi o que sucedeu no caso em apreço com os clubes Belavista Futebol Clube e Oporto FC, estes enquanto interessados requereram a declaração de impedimento do Dr. Fintas. Em todo o caso, compete ao presidente do órgão colegial conhecer a existência desse mesmo impedimento, à luz dos números 1 e 3 do referido artigo. Apesar de ser competente para conhecer do impedimento, parece-nos, atendendo aos factos relatados, que a decisão do presidente do CJ – quanto à declaração de impedimento do Dr. Fintas – padece de um vício de falta de pressupostos. De qualquer forma, a dita decisão, ainda que inválida por violação de lei, é geradora de mera anulabilidade, nos termos do art. 135.º CPA. A anulabilidade constitui regra, só excepcionalmente ocorrendo a nulidade. O regime impõe-se por razões de segurança e certeza jurídicas. Caso constituísse a regra, o regime da nulidade, por ser demasiado violento, manteria a pairar sobre os actos suspeitos de invalidade o perigo de, a qualquer momento, virem a ser considerados sem efeito. A eficácia, por sua vez, consiste na efectiva produção de efeitos pelo acto praticado. Este é eficaz desde o momento da sua prática. A eficácia do acto anulável resulta da conjugação do art. 136.º com o art. 141.º ambos do CPA. O acto é eficaz e obrigatório até que ocorra a sua revogação ou seja contenciosamente anulado, pelo que o acto aqui em análise só seria passível de impugnação junto dos tribunais administrativos. Assim, sendo o acto eficaz, o vogar Dr. Fintas encontrava-se vinculado aos efeitos da decisão, pelo que todas as deliberações tomadas posteriormente à declaração do mesmo vogal, nas quais este tenha intervindo, são anuláveis nos termos do art. 51.º n.º 1 CPA. A anulabilidade dos actos praticados pelo órgão ou agente impedido constitui a sanção para o não cumprimento das garantias de imparcialidade.

B – O encerramento da reunião
Na sequência da recusa do vogal Dr. Fintas em aceitar a decisão proferida pelo presidente do CJ, troca de insultos entre o presidente e o referido vogal e a resistência em abandonar os trabalhos levou a que o presidente do CJ concluísse pela falta de condições para prosseguir a reunião, encerrando-a.
Os presidentes dos órgãos colegiais são competentes para suspender ou encerrar antecipadamente as reuniões, nos termos do art. 14.º n.º 3 CPA. Esta norma confere ao presidente do órgão colegial um poder de fiscalização da legalidade da actuação administrativa. Assim a norma atribui-lhe o poder de encerrar a reunião quando circunstâncias excepcionais o justifiquem ou quando a lei o impõe, caso contrário o presidente deixava de ser um par inter pares. Porém, esta prerrogativa atribuída ao presidente carece de fundamentação pelo mesmo, e que fiquem exarados em acta não só a medida tomada como os motivos que o levaram a proceder assim. Esta exigência de fundamentação encerra duas razões: 1) limitação ao abuso desse privilégio concedido ao presidente, na medida em que não evita o decretar do encerramento antecipado da reunião de uma forma absolutamente discricionária; 2) serve como prova de eventuais ilegalidades e irregularidades em que o presidente haja incorrido para, se for caso disso, lhe serem exigidas as responsabilidades no quadro do órgão a que preside (p.e. perda do mandato) e/ou no âmbito civil (p.e. reposição de prejuízos causados).
Por outro lado, o art. 133.º n.º 2 g) CPA estabelece que as deliberações de órgãos colegiais que forem tomadas tumultuosamente são nulas. Trata-se aqui de um vício de forma específico das deliberações de órgãos colegiais. No pensamento do legislador estavam, provavelmente, as deliberações aprovadas no decurso ou na sequência de perturbações provocadas pelo público presente, mas a formulação utilizada cobre igualmente situações em que o tumulto provenha do interior do próprio órgão, seja ou não pública a reunião em que a deliberação seja tomada. Entendemos que, para o efeito do normativo em discussão, tumulto deve ser visto de uma forma ampla, ou seja, tanto a desordem provocada pelo público como aquela que é originada pelos membros do órgão. Julgamos ser indiferente a origem da perturbação para este propósito, sendo importante averiguar se é possível continuar com a normalidade dos trabalhos e proceder às deliberações com a necessária ponderação, que manifestamente não se alcança num clima de confronto entre membros do órgão. A teleologia legal é a de evitar a subsistência de deliberações tomadas em situações perturbadoras da racionalidade da formação da vontade do órgão. Este preceito visa assegurar a liberdade e a integridade dos membros presentes e garantir a cada um as condições necessárias para reflectir, falar e votar livre e esclarecidamente. Poder-se-á discutir se o presidente poderia optar por uma medida menos drástica à luz do princípio da proporcionalidade do art. 5.º do CPA. Seria uma hipótese suspender a reunião com o fito de operar um serenar dos ânimos, tentado reatar a normalidade dos trabalhos mais tarde. Porém, parece-nos que não seria a melhor opção dado o clima de confronto directo entre dois membros do órgão, que havia chegado à troca de insultos. Naquelas circunstâncias, com os dados que nos foram fornecidos, entendemos ter sido tomada a decisão correcta, uma vez que o ambiente verificado não iria proporcionar uma decisão serena sobre os assuntos constantes na ordem do dia.
Com este quadro factual e o devido enquadramento legal das questões, parece-nos que estavam criadas as condições para que o presidente pudesse encerrar os trabalhos.

C – Segunda reunião, válida ou inválida?
Na sequência da nossa exposição é fácil adivinhar qual é a nossa posição relativamente a esta matéria. É também nosso entendimento que, sendo a reunião correctamente encerrada (nos termos mencionados no ponto B), nada de jurídica e validamente relevante pode ter ocorrido após este momento. Por reunião entende-se um encontro formal, solene e formal de membros de um órgão colegial com o objectivo de exercer a respectiva competência. Só no decurso de reuniões se pode formar a vontade do órgão colegial, pelo que, não havendo reunião, não há deliberação. Ora qualquer encontro dos membros do colégio não constitui uma reunião. E foi isso precisamente que sucedeu. Não obstante, procuraremos analisar os factos posteriores ao encerramento da reunião e tecer um comentário mais rico em conteúdo jurídico.
Após o encerramento antecipado operado pelo presidente do CJ, cinco membros do CJ deliberaram continuar com a reunião (nas palavras da acta elaborada por esses cinco vogais) e revogar a decisão de encerramento da reunião. Nestas circunstâncias foram tomadas as deliberações constantes da ordem do dia da reunião que havia sido encerrada.
As reuniões dos órgãos colegiais podem ser ordinárias ou extraordinárias. Em ambos os casos devem ser convocados pelo presidente, salvo determinação legal ou colegial nos casos de reuniões ordinárias (nos termos dos artigos 16.º e 17.º). Nas palavras exaradas na acta diz-se “(…) os cinco vogais (…) deliberaram continuar a reunião”, e deve atentar-se com particular atenção á expressão “continuar” que denuncia duas comportamentos: 1) desrespeito pela decisão de encerramento da reunião; 2) considerar esta segunda reunião a mesma reunião que havia sido encerrada. Estes dois comportamentos merecem uma análise atenta e pormenorizada. Não se entende de que forma poderia essa segunda reunião ser ordinária, senão vejamos: houve uma reunião ordinária que teve lugar entre as 16 horas e as 17 horas e 55 minutos e se lavrou uma acta, que relatou o que se passou na reunião durante esse período, assinada por todos os membros do CJ. Por cada reunião que tenha lugar deve lavrar-se a acta correspondente. É do entendimento geral que a suspensão de uma reunião não encerra, não havendo que elaborar nesse momento uma acta respeitante à sessão realizada. Quer isto dizer que em caso de suspensão não se elabora acta referente à reunião suspensa, bastando-se uma menção a essa interrupção na acta a elaborar no fim da reunião. Não se compreende como é que os vogais podem querer continuar uma reunião que foi dada como encerrada e exarada uma acta assinada por todos os membros. Ao assinarem a acta, os membros validam o que se passou na reunião, não se pode aceitar que posteriormente venham alegar que continuam uma reunião que foi terminada e encarar esse encerramento como se de uma suspensão se tratasse. Uma reunião ordinária ou extraordinária encerrada não pode ser continuada sem mais, sobretudo quando a acta dessa reunião foi já elaborada e subscrita por todos os seus membros. O comportamento destes vogais é tanto mais incompreensível quando após a reunião que seria a continuação se elabora outra acta, assumindo, sem querer, que se tratava de uma verdadeira nova reunião e não de uma continuação. Assim sendo, cabe analisar se foram cumpridas as formalidades exigidas para a que a reunião tenha lugar: como se disse supra, as reuniões devem ser convocadas pelo presidente, salvo determinação legal ou deliberação colegial no caso das reuniões ordinárias; a razão de ser desta ressalva quanto às reuniões ordinárias, tem que ver com a frequência com que as mesmas têm lugar (estando previamente estabelecidas as datas de reunião ou ficando estabelecidas em sede da última reunião ordinária), sendo por vezes preteridas as formalidades quanto à convocação, bastando que seja entregue a ordem do dia correspondente à reunião que irá ter lugar no dia determinado, em obediência ao art. 18.º CPA. Não julgamos que tenham sido preenchidas as formalidades para a regular convocação de uma reunião ordinária.
Ainda que fosse considerada uma reunião extraordinária, teria sempre de ser convocada pelo presidente, nos termos do art. 17.º n.º 1 CPA. Assim, caso um terço dos vogais tivesse solicitado ao presidente que convocasse reunião extraordinária, este seria obrigado a convocá-la. Além disso, a convocatória da reunião deve ser feita para um dos 15 dias seguintes à apresentação do pedido, desde que com uma antecedência mínima de 48 horas sobre a data da reunião extraordinária. Nada disto sucedeu. Mas ainda que considerássemos a reunião como tal e que apenas tivesse padecido de inobservância das disposições sobre a convocação das reuniões, este vício apenas seria sanado, nos termos do art. 21.º CPA, quando todos os membros do órgão compareçam à reunião e não suscitem oposição à sua realização. Tal não sucedeu, também.

D – Processo disciplinar ao presidente
No que diz respeito ao processo disciplinar instaurado pelos conselheiros ao presidente do CJ, cumpre dizer o seguinte: a ordem do dia de cada reunião é, nos termos dos art. 18.º n.º 1 CPA, estabelecida pelo presidente, só podendo ser objecto de deliberação os assuntos incluídos na ordem do dia, conforme a primeira parte do art. 19.º CPA. No entanto, atendendo à segunda parte do mesmo preceito, tratando-se de reunião ordinária, podem outros assuntos ser objecto de deliberação desde que pelo menos dois terços dos membros reconheçam a urgência da deliberação sobre esses assuntos não incluídos na ordem do dia. Não nos parece, todavia, que tal tenha sucedido, pelo que o processo disciplinar instaurado deve ser considerado irregular, desde logo porque tal matéria não constava da ordem do dia.

E – Conclusões
Após a análise dos pontos que nos foram suscitados pela Sociedade de Advogados AAA, concluímos no seguinte sentido:
1. O presidente do CJ, Sr. José Manuel Espadinha, tinha competência para conhecer dos impedimentos do vogal Dr. Fintas e para declará-lo impedido nos termos do art. 45.º n.º 3 CPA.
2. Embora se possa defender a invalidade da declaração por padecer de um vício de falta de pressupostos, de qualquer forma, é geradora de mera anulabilidade, nos termos do art. 135.º CPA.
3. Considera-se o acto eficaz, porque dele se deu conta ao vogal Dr. Fintas aquando da notificação. A eficácia do acto anulável resulta da conjugação do art. 136.º com o art. 141.º, assim como do art. 127.º, todos do CPA. Assim sendo, o Dr. Fintas, estava vinculado aos efeitos da mesma.
4. Todos os actos praticados pelo vogal Dr. Fintas após a declaração de impedimento, consideram-se inválidos e anuláveis nos termos do art. 51.º n.º 1 CPA.
5. Consideramos que o presidente do CJ tem competência para encerrar a reunião antecipadamente à luz do art. 14.º nº 3 CPA. Faz parte das suas competências o “assegurar o cumprimento das leis e a regularidade das deliberações”, e nesse sentido, agiu bem ao encerrar uma reunião que havia entrado num clima de instabilidade que impossibilitava o normal funcionamento do órgão.
6. Dadas as circunstâncias descritas em acta e pelos elementos de facto fornecidos pela entidade que nos contactou, entendemos que o presidente do CJ actuou em observância do princípio da proporcionalidade do art. 5.º do CPA, dado que as condições existentes no órgão não aconselhavam qualquer deliberação e julgamos que a opção pela suspensão seria inútil, devendo manter-se o ambiente tenso e inimigo da boa decisão.
7. O art. 133.º n.º 1 g) do CPA obriga culmina com nulidade quaisquer deliberações tomadas tumultuosamente. Defendemos uma visão ampla deste conceito de “tumulto”, no sentido de se entender quer os desacatos os criados pelo público que esteja a assistir quando se trate de reuniões públicas, quer aqueles criados pelos próprios membros dos órgãos colegiais.
8. Não consideramos que tenha existido qualquer acontecimento juridicamente relevante após o encerramento da reunião. Não admitimos a reunião de vogais sem obediência das formalidades e a tomada de deliberações em clara violação dos princípios da legalidade e da boa fé. Se uma reunião se tem como encerrada, se se assina uma acta onde se atesta esse encerramento bem como tudo quanto se haja passado nessa reunião, não é admissível que mais tarde se venham a reunir um grupo de vogais, sem prévia convocação, tendo em vista a tomada de decisões contrárias à reunião antecedente. Uma reunião pressupõe um encontro formal, marcado em obediência a formalidades prescritas em lei ou deliberações colegiais, também elas tomadas em obediência à lei. Não se pode admitir que um encontro informal seja combinado, nessa sede se tomem deliberações que revogam decisões formal e validamente tomadas e se tente legitimar um encontro inválido através da obediência das formalidades para operar as deliberações, esquecendo que na sua génese havia uma invalidade suficiente para deitar tudo por terra. Se tal se admitisse, então estaríamos a subverter o princípio da legalidade e da segurança jurídica, onde um superior hierárquico com competências próprias via os seus subalternos praticar actos contrários aos seus sem qualquer autorização para tal. Não se pode admitir tal entendimento e, por isso, recusa-se a qualificação de reunião a qualquer encontro que tenha sucedido após o encerramento da reunião do CJ do dia 4 de Julho de 2008 pelas 17 horas e 55 minutos.
9. O processo disciplinar instaurado ao presidente do CJ não é válido porque tal deliberação não constava da ordem do dia da referida reunião.
10. Entendemos, tudo visto, que devem ser declarados inexistentes todos os actos administrativos praticados posteriormente ao encerramento, no nosso entender válido, da reunião pelo Sr. José Manuel Espadinha.

Tal é nosso parecer, s.m.o.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2008

Nuno Poças
Nuno Palavras

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